domingo, 24 de março de 2013

Valores universais ou ditames religiosos?

Quando vem de pessoas que não tiveram a oportunidade de alcançar níveis mais altos de educação formal, é até compreensível. Entretanto, quando vem de alguém de elevado nível intelectual, é, no mínimo, preocupante e causa uma profunda frustração.

Eu me refiro ao fato de alguns cristãos pretenderem impor a Bíblia e os valores cristãos a toda sociedade. Isso pode gerar conflitos muito perigosos e levar o nosso país a se dividir em grupos que, por conta de religião, se agridam até fisicamente. O que seria profundamente lamentável.

É hora das lideranças cristãs sérias refletirem com muito cuidado e não incentivarem os conflitos. Ao contrário. É preciso lembrar as palavras do Mestre dos cristãos: “Assim como quereis que os homens vos façam, do mesmo modo lhes fazei vós também”. 

Não precisa revidar agressões com palavras grosseiras e sarcásticas para mostrar que “é o tal” e que “não leva desaforo pra casa”. Há um conhecido pastor tão destemperado publicamente que eu temo pelo seu palavreado na intimidade. Parece que ele acha que grito inspira ou impõe respeito – ou seria medo? – nos outros. Só nos tolos. Ao invés de gritar, melhore seus argumentos.

A minha opinião, que de modo algum pretende ser única ou inquestionável, está explicitada no comentário a seguir.

Valores específicos cristãos são para os cristãos, não se pode impô-los simplesmente para os que não o são. Valores específicos espíritas são para os espíritas. Valores específicos católicos são para os católicos. Valores específicos ateus são para os ateus e não para toda a nação formada pelas mais diversas crenças ou não crenças.

Infelizmente, isso é o mais difícil para as pessoas religiosas compreenderem. Elas entendem que se o Evangelho é a suprema verdade – somente para eles, evidentemente – todos têm a obrigação de se submeter a essa verdade. Lamentavelmente nem os cristãos concordam em relação a todos os aspectos doutrinários.

O presidente dos Estados Unidos, Sr. Obama, em um comentário sobre o estado laico, perguntou: “Que passagens das escrituras deveriam instruir as nossas políticas públicas?”.

E eu pergunto: “Os textos interpretados pelos pentecostais ou pelos cristãos tradicionais ou pelos católicos ou pelos neopentecostais ou pelos judeus ou pelos espíritas?”

Pensemos numa situação hipotética, porém não impossível de acontecer. Um cidadão Adventista do Sétimo Dia ganha a eleição para a Presidência da República. Com uma maioria adventista no Congresso Nacional ele poderia impor à nação a guarda do sábado, isto é, o domingo deixaria de ser o dia de descanso, já consagrado há longo tempo, e todos os brasileiros teriam de descansar obrigatoriamente no sábado. Tudo bem pra você? 

Para os adventistas, a guarda do sábado é um preceito para os nossos dias, pois é um mandamento da Lei Mosaica, e está na Bíblia, Palavra de Deus.

Os adventistas também são contrários à ingestão de carne de porco. Imagine uma lei que visasse proibir todos os brasileiros de comerem carne de porco. Você concordaria?

Mulher pode vestir roupa de homem? Dt. 22.5 diz que não. E aí, esse ensinamento é temporal ou atemporal? Mt. 11.13 diz “Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João”, entretanto muitos usam o V.T. apenas naquilo que lhes é conveniente, seja para condenar quando lhes interessa seja para defender quando lhes convêm. Há igrejas que usam Dt. 22.5 para proibir as mulheres de usarem calças compridas.

Em I Tm. 2.9-12, Paulo diz que as mulheres não devem usar tranças, ouro, pérolas ou vestidos custosos e que aprenda em silêncio com toda submissão, pois não permite que a mulher ensine, nem que tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio.

Tal ensinamento de Paulo é para hoje ou não? Alguns encontram uma desculpa para dizer que não se aplica aos nossos dias. Dizem que naquela época as mulheres estavam querendo sobrepujar os homens, daí o ensinamento de Paulo. Só que a Bíblia não afirma isso em lugar algum.

Já eu entendo que Paulo ensinou assim porque essa era sua visão da sociedade de sua época, talvez inspirado na ordem da criação, como ele mesmo faz alusão mais adiante no texto citado. 

E se um grupo fundamentalista assumir o governo e estabelecer que nenhuma mulher pode usar calça comprida nem usar joias ou falar em público? Está tudo bem para você?

Uma outra situação factível. Ganha a eleição para a presidência do Brasil um governante judeu, que não reconhece o N.T. e nem concorda que Jesus é o Filho de Deus. Os judeus só aceitam o V.T., portanto para ele certamente a lei e os profetas não duraram apenas até João Batista e muitas de suas ordenanças são para os nossos dias. E se ele quiser impor ao restante da sociedade suas crenças e seus valores? Aceitamos todos passivamente?

Ainda, imagine que assuma o governo da nossa nação um presidente muçulmano. Os cristãos aceitariam que ele tomasse decisões baseadas no Alcorão em detrimento do que diz a Bíblia? Certamente não. Esse é o “X” da questão.

Observe o seguinte: para o muçulmano, o Alcorão é a palavra de Deus. 

Há muitos outros exemplos que poderiam ser citados, talvez até mais interessantes. Entretanto, os exemplos que eu dei são apenas para mostrar que não se pode governar uma nação tomando como base a Bíblia ou qualquer outro livro sagrado. Nem mesmo os cristãos se entendem quanto à interpretação da Bíblia. É claro que ela tem valores muito importantes e atemporais, mas só devem ser usados, no governo de uma nação, quando forem comuns a todos os cidadãos.

Quem governa, governa para todos, inclusive para quem não crê na Bíblia e muitas vezes nem mesmo crê em Deus. Como se pode argumentar com a Bíblia, acerca de questões de interesse público, para alguém que não crê na Bíblia?

Uma nação deve ser governada por valores universais – que podem estar na Bíblia, e certamente muitos estão – não por valores específicos de uma religião ou crença.

Saulo Alves de Oliveira

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