sexta-feira, 14 de abril de 2017

Cura pela fé ou através da ciência

Por Saulo Alves de Oliveira

Se Deus é onipotente, por que é preciso ter fé, ou acreditar, para ser curado?

Disse-me uma amiga: “Não é preciso ter "fé" para ser curado, isso é coisa da teologia da prosperidade. A cura pode ou não acontecer – em ambos os casos pela soberana vontade de Deus – através da ciência, uma bênção para o homem, ou da oração, um bálsamo para quem crê. É o que eu penso. Adoecer e morrer fazem parte da vida. Eu mesma já fui curada pela fé, através da oração, ou pela ciência”.

Não me parece que ter fé para ser curado seja coisa da teologia da prosperidade. Muito antes de se falar em teologia da prosperidade, ou desde que comecei a ter consciência dos acontecimentos ao meu redor, numa idade ainda muito tenra, diz-se que para alcançar determinadas coisas, inclusive a cura, é indispensável ter fé, pois “sem fé é impossível agradar a Deus” e “a fé é a certeza das coisas que se esperam”. Isso é enfatizado praticamente todos os dias nas igrejas e nos lares cristãos.

Parece haver, todavia, no Novo Testamento, dois aspectos relacionados às curas realizadas por Jesus. Em primeiro lugar, a cura é colocada nitidamente como uma contrapartida à fé e, em segundo, a fé parece não ser levada em consideração, pelo menos explicitamente.

Abaixo relaciono apenas três episódios para cada caso.

1 – Curas em resposta à fé dos doentes  

1.1. Mulher com hemorragia – Mt. 9.22: “Mas Jesus, voltando-se e vendo-a, disse: Tem ânimo, filha, a tua fé te salvou. E desde aquela hora a mulher ficou sã”.

1.2. Dois cegos – Mt. 9.28, 29, 30: “...E Jesus perguntou-lhes: Credes que eu posso fazer isto? Responderam-lhe eles: Sim, Senhor. Então lhes tocou os olhos, dizendo: Seja-vos feito segundo a vossa fé. E os olhos se lhes abriram.”

1.3. Cego de Jericó – Mc. 10.52: “Disse-lhe Jesus: Vai, a tua fé te salvou. E imediatamente recuperou a vista, e o foi seguindo pelo caminho”.

(Um quarto episódio com Paulo – At. 14.9,10: “...e vendo que tinha fé para ser curado, disse em alta voz: Levanta-te direito sobre teus pés. E ele saltou, e andava”.)

2 – Curas em que a fé parece não ter sido levada em consideração

2.1. – Paralítico do tanque de Betesda – Jo. 5.8, 9: “Disse-lhe Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. Imediatamente o homem ficou são; e, tomando o seu leito, começou a andar”.

2.2. – Mulher encurvada – Lc. 13.12, 13: “Vendo-a Jesus, chamou-a, e disse-lhe: Mulher, estás livre da tua enfermidade; e impôs-lhe as mãos e imediatamente ela se endireitou, e glorificava a Deus”.

2.3. – Sogra de Pedro – Mt. 8.14, 15: “Ora, tendo Jesus entrado na casa de Pedro, viu a sogra deste de cama, e com febre. E tocou-lhe a mão, e a febre a deixou; então ela se levantou, e o servia”.
     
Com relação ao item “2” acima, eu disse “parece” porque não ficou registrado que as curas ocorreram em resposta a uma declaração de fé dos enfermos, no entanto não posso afirmar com certeza que aquelas pessoas não conheciam ou não acreditavam em Jesus. Por outro lado, em Mt. 13.58 está registrado que Jesus deixou de fazer muitos milagres em sua terra, Nazaré, “por causa da incredulidade deles”. Naturalmente, a incredulidade está associada à falta de fé. Portanto, na cidade dos nazarenos, não fé, não milagres. Parece que, do ponto de vista cristão, sem fé não pode haver cura.

A propósito dessa questão de ter ou não fé, há um grande equívoco na mente de muitos crentes. A pessoa se submete a um rigoroso tratamento médico e, em muitos casos, obtém êxito. Ao fim de um doloroso processo, declara: Deus me curou. Não, Deus não a curou, quem a curou foi a medicina.

Na realidade, a cura pode ser alcançada através da fé em Deus – ou em outros elementos da devoção humana – ou através da medicina, que envolve também, muitas vezes, a fé nos remédios ou nos médicos. Neste último caso, a fé não tem nada a ver com o sobrenatural. É simplesmente a crença, ou confiança, que o paciente deposita nos remédios, no tratamento ou na capacidade do médico. E isso não faz mal algum. Ao contrário. Faz bem, pois pode ajudar na recuperação e cura do enfermo. É algo similar ao efeito placebo.  

Vamos supor a seguinte situação. Determinada pessoa é acometida por uma grave enfermidade. Se não recorrer à medicina, morrerá daquela doença. Então ela faz um longo e rigoroso tratamento médico e, em consequência, alcança a cura.

Outro exemplo. Uma pessoa sofre um enfarte e, caso não se submeta a um procedimento cirúrgico emergencial, fatalmente morrerá. Ao invés disso, tal indivíduo se submete a uma delicada cirurgia cardíaca e volta a ter uma vida normal.

Mesmo tendo recorrido à medicina, tais pessoas foram curadas ou salvas pela soberana vontade de Deus?

Se a resposta é sim, devo perguntar: por que não ficar em casa esperando apenas pela soberana vontade de Deus? Por que os crentes vão ao médico? Deus precisa da medicina para curar alguém? Se Deus é onipotente, não há necessidade de tratamentos ou cirurgias para Ele curar. 

Outra consideração. Durante milhares de anos, a poliomielite e outras doenças infligiram enorme sofrimento à humanidade, deixando milhões de crianças paralíticas ou matando-as. Durante todo esse tempo a soberana vontade de Deus não interferiu para salvar essas crianças. Nos últimos cem anos a ciência descobriu diversas vacinas e milhões de crianças têm sido salvas em todo o mundo. Infelizmente, em países pobres da África e da Ásia milhares e milhares de crianças ainda morrem de doenças que há muito tempo foram erradicadas nos países mais ricos.

Sendo assim, isso quer dizer que a soberana vontade de Deus interfere para salvar as crianças dos países ricos através da medicina e para deixar morrer as crianças dos países pobres? Tal atitude não seria uma injustificável discriminação? Faz algum sentido pensar dessa forma?

Minha conclusão: cura pela fé nada tem a ver com cura através da ciência.

No entanto, posso estar equivocado.