sábado, 21 de fevereiro de 2015

Ao caro Pastor

Por Saulo Alves de Oliveira

Agradeço-lhe por sua mensagem e por sua preocupação em relação a este ser humano comum. Todavia, não tenho nada a dizer sobre suas observações, exceto quanto ao seu último parágrafo.

Não sofro angústias ou crise existencial. Na realidade, até sofro, mas nada que não seja comum a qualquer ser humano em sua luta diária pela sobrevivência. Certamente até você passa por momentos de angústia. Nada mais natural, não é mesmo?

Talvez eu até viva uma crise existencial, que se prolonga por, quem sabe, 25 anos. Confesso-lhe que não sei se sairei dela um dia. Mas, se vivo uma crise existencial, posso afirmar que tal fato me tem feito ver coisas que antes estavam encobertas pela névoa de uma fé radical e, de certo modo, fundamentalista.      

Quanto a frustrações e decepções, concordo com você, porém sob outros aspectos.

Já me decepcionei com Deus sim, frustrei-me com a Bíblia e com a fé. Senti-me desamparado por Ele diversas vezes.

Muitas coisas aconteceram na minha vida, que mudaram a minha forma de me relacionar com Deus, minha visão da Bíblia e da fé, a tal ponto que hoje não tenho receio de declarar, como o faço agora. Na realidade, hoje não sou a mesma pessoa de há 25 anos. Não estou apenas mais velho. Realmente, não sou o mesmo.

Sempre ouço pessoas dizerem que Jesus nunca as decepcionou. Não sei o que é que poderia acontecer na vida de alguém para se dizer decepcionado com Jesus. Há pessoas que passam 10, 20, 30 anos ou mais orando por alguma coisa muito especial para si e nada acontece. Depois, morrem sem ver o seu sonho realizado. A desculpa e o autoconsolo é que “certamente não era a vontade Deus”. Realmente, assim, por mais que alguém sofra, Jesus nunca decepciona ninguém.

Felizmente – ou infelizmente, não sei ao certo –, comigo as coisas não são assim. Eu não dispenso evidências convincentes.

Jamais entendi e sempre questionei, pelo menos na minha mente, certas coisas, no entanto para o meu “bem” deixava pra lá. É como dizia minha querida mãe: “Meu filho, quando se come peixe, a gente deixa as espinhas de lado”. E quantas espinhas eu deixei de engolir!

Porém as coisas se complicaram muito com a morte da minha sogra aos 51 anos de idade em 1989.

Talvez mais do que seus filhos, eu não acreditava que ela morreria daquela doença. Por quê, se todas as pessoas morrem?, você pode perguntar. Porque eu tinha fé e a Bíblia diz “...pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele há de passar; e nada vos será impossível.” Portanto, enquanto havia vida, eu acreditava que ela seria curada. E eu orei muito por isso.

Na verdade, eu fui reprovado no primeiro grande teste da minha vida. E isso teve uma repercussão extremamente importante ao longo dos anos seguintes.

Eu pedi, pedi, e obtive o silêncio como resposta. E essa história de dizer que o silêncio de Deus também é resposta não me convence.

(Minha sogra morreu de câncer; meu sogro morreu de câncer; minha mãe morreu de câncer; meu pai morreu de câncer; quatro referenciais na minha vida, todos crentes, sinceros, honestos e de vida “santa”. Tais fatos, na minha ótica, são sintomas de algo que as pessoas não querem ver porque para elas é reconfortante não ver.)

E essa não foi a única vez. Depois vieram outras experiências. Posso relatar mais uma. Eu passei por momentos muito difíceis depois que fui trabalhar em Recife. Não sei se você sabe, mas passei onze anos trabalhando no BB em Recife a partir de 1996. E nos primeiros dois anos vivi uma experiência emocional muito desagradável, ou seja, uma quase depressão, e me vi absolutamente só.

Pedi tanto a Deus que me ajudasse a atravessar aquela etapa tão difícil, e nada de ajuda. Não precisava eliminar o meu sofrimento, pois o sofrimento é inerente à vida humana. Bastaria que me dissesse: “Eu estou ao teu lado e te ajudo na caminhada”. No momento em que mais precisei, Ele me abandonou. Silêncio total. A decepção foi literal.

Então, não tinha outra saída, pois já haviam transcorrido vários meses e, para superar a minha quase depressão, eu tive de recorrer a alguns profissionais que me ajudaram realmente a sair daquela situação.

A partir daí passei a questionar ainda mais muitas coisas referentes à vida, à fé, a Deus e à Bíblia. E não encontrei respostas; e quando as encontrei não me satisfizeram; e quando me satisfizeram tinham outra dimensão.

Eu digo sempre que, para algumas perguntas, já encontrei respostas; outras, ainda estão se processando na minha mente; e há aquelas para as quais, provavelmente, eu jamais encontre respostas. Mas, no estágio da vida em que estou, jamais desistirei de procurar respostas. E isso tem sido de um valor extraordinário para o meu desenvolvimento intelectual, moral e espiritual.    

Não pense que eu tenho raiva de Deus por tudo isso. Eu apenas passei a vê-lo de uma maneira totalmente diferente.

Depois, vieram outras descobertas, outros conhecimentos que me deram uma nova visão da vida e do ser humano. Eu posso lhe dizer que é uma visão espetacular desse pequeníssimo planeta chamado Terra, onde toda a vida que conhecemos habita, na vastidão deste imenso e deslumbrante Universo.

Só lamento que, talvez por deficiência intelectual inerente a este beócio ser humano, essa nova visão tenha vindo com tanto atraso.

Na realidade, sou apenas alguém envolto em pensamentos e reflexões acerca da vida.

Tenho consciência de que estou só um pouquinho acima da mediocridade, porém, no máximo, no máximo mesmo, talvez só alcance a média da inteligência das pessoas comuns.

É provável que, se tenho alguma vantagem em relação à mediocridade (?), se deva tão somente a minha necessidade de saber a verdade e não simplesmente acreditar, de não ter receio de perguntar, questionar, ainda que o Criador, e não me conformar com certas respostas, apesar de não ter ou não saber a resposta correta ou definitiva para muitas questões.

Ah, meu caro Pastor, a Bíblia tem histórias inaceitáveis do ponto de vista de um Deus onipotente, onisciente e cuja benignidade dura para sempre. E as pessoas têm medo de questionar. Por quê? Por medo de Deus?

Apenas um exemplo, dentre muitos que poderiam ser citados: nunca me conformei com as respostas para as matanças de animais no VT. Na consagração do templo, Salomão sacrificou, em apenas sete dias, 22.000 bois e 120.000 ovelhas. Mesmo que tenham sido quatorze dias, “...pois haviam celebrado por sete dias a dedicação do altar, e por sete dias a festa”, ainda assim atingiram a terrível marca de mais de dez mil animais por dia ou sete animais mortos a cada minuto! Antes eu lia tal passagem e não tinha dificuldade em digeri-la. Hoje, não. Não vejo justificativa alguma razoável para isso. Não vejo justificativa alguma para essa sede insaciável de sangue. Ao se considerar o Ser transcendental que é Deus, não vejo sentido algum em sua satisfação com o “cheiro suave” de animais queimados.

Sob o ponto de vista do Deus onipotente, há algo mais grave ainda e de justificativas que nada justificam: a matança ou extermínio de seres humanos – homens, mulheres, velhos, crianças inocentes – e animais, também inocentes, ordenadas por Jeová através de ou executadas por homens como Moisés – o manso – e outros. Ele, o Senhor, poderia ter sido seletivo com os maus.

São moralmente inaceitáveis os crimes e assassinatos cometidos por Israel sob as ordens de homens como o já citado Moisés, a mandado do próprio Deus (sic). São muitos os exemplos, mas cito apenas um (você conhece a Bíblia muito melhor do que eu, você foi meu professor): o massacre dos midianitas – Nm. 31.1-24.

Tais histórias me afligem e me são profundamente desconfortáveis. A você, não?

Além disso, acredito que jamais entenderei o porquê de tantas divergências de interpretação da Bíblia, A Palavra de Deus, o Manual de Deus para a humanidade. Só para citar um único exemplo: doutrina da predestinação versus livre arbítrio. Na realidade, para mim isso é um forte indício de algo muito maior e muito perturbador, mais do que a simples contradição entre as duas doutrinas. Porém acho que sobre isso devo ficar por aqui mesmo.  

Conheço muito bem, e de longas datas, sua capacidade intelectual, seu profundo conhecimento teológico e das ciências e sua perspicácia argumentativa. O que deve ter-se aprimorado ainda mais com o passar dos anos.

Apesar de nunca ter privado da sua amizade, sempre o respeitei e o admirei pela sua sinceridade, caráter, honestidade e ética. Hoje, ainda o respeito.

Quanto a suas posições políticas, conhecidas mais claramente agora, lamentavelmente não posso dizer a mesma coisa. Mas, felizmente vivemos em uma democracia e somos livres para pensar e decidir de que lado devemos estar. É um direito seu e que jamais pode lhe ser negado. Afinal, temos o livre arbítrio, não é mesmo?  

Quanto a mim, procuro viver a vida sabendo que estar vivo e ter a consciência do ser é a coisa mais espetacular que poderia me acontecer, pois sou fruto de uma grande corrida que se travou há quase sessenta anos no interior de Maria Carlos e, dentre centenas de milhões de potenciais seres humanos, literalmente eu fui o vencedor. Todos os demais foram simplesmente eliminados. Portanto, eu poderia não estar aqui, e jamais tomar conhecimento das belezas e feiuras da Natureza. Bastaria apenas que outro espermatozoide tivesse sido mais rápido do que este “atrevido”.

Não pense que, por tudo que falei, hoje sou uma pessoa amarga e revoltada. Ao contrário, sou muito feliz porque hoje tenho uma consciência muito maior da finitude da vida e da sua beleza e do que significa estar vivo. 

Para concluir, devo dizer que não sei exatamente como enfrentarei aqueles momentos cruciais no limite da vida para a eternidade. Espero ter a mesma tranquilidade e resignação do meu velho e querido Pai que, se não demonstrou alegria porque ia encontrar-se com o Eterno, manteve, até o fim, a serenidade e firmeza de quem sabe para onde vai.

Desejo tão somente que você, sua família e sua querida esposa – que, segundo notícias que ouvi, passa por problemas de saúde não tão simples – estejam em Paz.

Agradeço pelas orações e pelo apreço.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

No passado, no presente e no além

Por Saulo Alves de Oliveira

Um antigo vizinho meu que tinha um retardo mental gostava muito de usar a expressão “eu fico incrível” quando alguma coisa o incomodava, algo que ele julgava fora do padrão da normalidade ou para o qual ele não encontrava justificativa convincente.  

Muito próximo da minha casa há um terreno desocupado. Meu vizinho sempre questionava porque ali não se construía alguma coisa. Lembro que ele sempre citava uma farmácia ou um supermercado. Isso o incomodava, então ele ficava “incrível” com tal situação.

Ainda hoje, transcorridos vários anos depois que o meu vizinho se mudou, o terreno continua desocupado, servindo apenas para juntar lixo, restos de construção, roedores e insetos. Agora quem fica “incrível” sou eu.     

Vou tomar emprestada a expressão do meu antigo vizinho.

Eu fico “incrível” como em questão ou matéria de fé as pessoas tentam justificar o injustificável.

E o pior: não são pessoas loucas ou ignorantes, são pessoas normais, sãs e inteligentes, algumas com elevada formação acadêmica, que convivem conosco diariamente e estão convencidas de que estão certas.

As suas crenças as fazem aceitar com toda naturalidade verdadeiras barbáries cometidas no passado e no presente e que também se darão no além, não sei se distante ou perto, contra o ser humano.

E o que mais me incomoda: um dia eu também pensei assim!